terça-feira, 17 de abril de 2012

Resumindo a Inquisição


Primeiramente é errado falar em "Inquisição" no singular, pois houveram diversas e distintas inquisições ao longo da história.

I- Os Padres da Igreja sempre defenderam que os hereges não deveriam ser mortos por serem hereges, por crerem diferente. De fato, no Império Romano cristão não haviam perseguições oficiais de morte aos hereges. Contudo, os grupos heréticos que atentassem contra a Ordem pública e social, sofriam as penas aplicadas pelo poder público. Nesse sentido que Santo Agostinho, bispo de Hipona, mesmo sendo contra a morte dos hereges, reconheceu necessária a execução do herege Prisciliano porque este perturbava a Ordem pública. No mais, os membros heréticos eram apenas afastados das igrejas e seus clérigos depostos de suas jurisdições e cargos.

II- É fundamentalmente a partir do século XI que surge na Cristandade ocidental as primeiras aplicações de penas de morte contra a heresia. Lê-se que nesse por volta dessa época o Rei Roberto I, o Piedoso, da França mandou queimar alguns indivíduos por causa de suas crenças heréticas. Por volta dessa época iniciam-se as investigações dos membros acusados de heresia. A existência ou não de heresia nos acusados competia à averiguação e juízo dos Bispos diocesanos, que tinham bastante autonomia nesses processos.

III- É também nesse século XI que surge no sul da França a heresia dos cátaros ou albigenses. Uma heresia que doutrinariamente pregava basicamente o dualismo maniqueísta: o Deus bom criara o espiritual e o Deus mal criara o material. Consequentemente rejeitavam a doutrina da Encarnação do Verbo de Deus e condenavam o matrimônio e a reprodução humana (haja vista que esta perpetuava a matéria). Os cátaros conseguiram grande influência sob a sociedade do sul da França, conseguindo mesmo reunir concílios e receber apoio de diversos senhores nobres locais, principalmente na passagem entre os séculos XII e XIII. Em 1184, o Papa Lúcio III emite o decreto Ad Aboldendam conclamando os príncipes seculares a combaterem os hereges em seus territórios. Após a tentativa de envio de missionários cistercienses e da conclamação de várias cruzadas contra os cátaros, o Papa Inocêncio III envia São Domingos de Guzmão e outros frades dominicanos como "inquisidores da fé". Estes realizariam o papel dos bispos no juízo e inquirição das heresias na qualidade de delegados representando o Papado. O Catarismo é um dos primeiros movimentos heréticos que assume uma natureza de contestação à ordem social, um dos primeiros movimentos de caráter notadamente violento entre os hereges. A Igreja via-se na necessidade de defender seu rebanho. Também os poderes seculares viam que era hora de agir com mais firmeza.

IV- Em 1231, o Papa Gregório IX instituiu oficialmente o Tribunal da Santa Inquisição, institucionalizando, organizando e regulamentando o esquema de tribunais eclesiásticos formados por delegados papais como havia instituído Inocêncio III anteriormente.

V- A Inquisição tratava-se de um tribunal eclesiástico, composto por clérigos e religiosos (embora em alguns períodos tenham havido inqusidores leigos também) com jurisdição unicamente sobre os batizados católicos. Buscava investigar casos de heresia dentro da Igreja, principalmente os heresiarcas (hereges que difundiam e propagavam suas heresias). Tratava de impor as penas espirituais (penitências, excomunhões, interditos), enquanto nos casos mais graves entregava os réus ao braço secular que aplicava as penas físicas e materiais (confisco de bens, demolição da casa ou morte). O esquema montado pelo tribunal era centrado na busca da confissão do réu e seu arrependimento, contrário ao sistema mais comum nos meios seculares da época, onde havia o chamado "duelo judiciário" (as duas partes duelavam e a parte vencedora do dito duelo era automaticamente a vencedora da causa jurídica). Mesmo com a autorização do uso da tortura (feita por pessoas enviadas pelas autoridades seculares) pelo Papa Inocêncio IV na bula Ad Extirpanda, esta era limitada em seu tempo e em suas formas (proibia-se mutilações, fraturas e derramamento de sangue), obrigando também sempre a presença de um médico nas sessões. Mesmo assim, o método mais utilizado para obter a confissão dos réus era o interrogatório (os manuais de inqusidores ensinavam a obter confissões apenas mediante o desenrolar da conversa com o réu).

VI- Os teólogos justificavam a utilização de penas físicas aos hereges não em virtude de suas crenças (pois a Igreja sempre considerou que não se pode converter à força), mas em virtude do perigo de que eles levassem outros a crerem em suas heresias (vide a argumentação de São Tomás de Aquino) e também em virtude de suas ações violentas de perturbação da ordem, o que dava ao poder secular pleno direito de agir.

VII- A Inquisição não autou em toda a Europa na Idade Média. Sua ação limitou-se mais à França, Itália, Sacro Império Romano (Alemanha, Áustria, Bohemia, etc) e Aragão. No final do século XV, o rei Fernando II de Aragão (que havia unido seu reino aos reinos de Castela e Leão mediante seu matrimônio com a rainha castelhana Isabel I) conseguiu do Papa Sixto IV a instituição de um Tribunal inquisitorial no restante da Espanha. Este era chefiado por um Inquisidor-geral, nomeado geralmente pelo rei (lembrando que a Inquisição papal tinha seu próprio Inquisidor-mor, nomeado pelo papa). Em Portugal, no século XVI, o rei D. João III obteu semelhante instituição em Portugal. Estes dois tribunais mais tarde acabaram se transformando em instrumentos de favorecimento do Absolutismo de seus monarcas, desviando-se do fim original.

VIII- Com o Concílio de Trento em fins do século XVI, o Papado reorganizou a Inquisição papal, agora chamado de Tribunal do Santo Ofício. Mesmo após o abandono dos poderes seculares na ação inquisitorial (e a abolição das inquisições em Portugal e Espanha no século XIX), o Santo Ofício continuou trabalhando na defesa da ortodoxia católica, estabelecendo as sanções e penas espirituais, mas agora não era mais um tribunal eclesiástico, mas um discatério da Cúria Romana. Paulo VI mudou o nome desse discatério para Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé.

IX- Devemos por fim entender a Inquisição dentro de seu contexto histórico (e não estou defendendo o erro historicista, pois falo no âmbito da práxis e não no âmbito doutrinário). A Inquisição foi uma ação conjunta da Igreja e dos poderes seculares (em o que hoje entenderíamos por Estados confessionais, frise-se) na tentativa de conter o avanço das heresias entre os membros da Igreja e de combater os movimentos heréticos de caráter violento. Foi pois uma tentativa de defender a fé e preservar a ordem pública, entendida dentro das ações e mentalidades próprias àquele contexto.
Certo é porém, que a Igreja nunca ensinou que se devesse converter as pessoas pela força (embora alguns príncipes cristãos o tenham feito - se por zelo desmedido ou interesses desonestos, não o sabemos). A Igreja não erra ao ensinar sobre fé ou moral, mas seus membros erram muitas vezes. Os papas sempre combateram os abusos dos maus inquisidores (pois houveram também inquisidores santos) e recentemente o Papa João Paulo II pediu perdão pelos erros dos membros da Igreja cometidos ao longo da História.
A Inquisição foi algo necessário para seu tempo, mas não encaixa-se mais (ao menos com era feita e estruturada na época) para os tempos atuais. Pois, embora as verdades de fé sejam imutáveis, a ação pastoral da Igreja muda conforme os tempos, lugares e necessidades. A pastoral preconizada pelo Concílio Vaticano II visa trazer os homens à verdade à unidade católica mediante o diálogo, embora continue admitindo-se o combate aqueles movimentos sectários e religiosos que ameaçem o convívio e a paz social, como os fanatismos e terrorismos.

Bibliografia consultada:
FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 2005.
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu Mundo. São Paulo: Saraiva, 1993.

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